O que é o governo e o que deveria ser

Vamos começar comparando como deveria funcionar e como funciona, o Estado e o governo.

Primeiro, trataremos de como deveria funcionar, pelas ideias de Estado e de Governo, e brevemente discutir o seu objetivo. A partir daí, poderemos, nos próximos dias, refletir sobre vários aspectos, desde onde estamos até para onde queremos ir.

O Estado é um grupo de pessoas (povo), em um território delimitado, organizados política, social e juridicamente, onde vigoram regras escritas, aplicáveis a todos, por um governo, que também os representa perante os outros Estados. Estamos tratando em todo este texto, apenas da esfera federal, para simplificar.
O governo é a entidade para a qual o povo delegou o poder de condução do Estado, segundo o interesse público, ele possui soberania reconhecida tanto interna como externamente.

É claro que estamos falando aqui de um estado republicano democrático de direito, a forma atual do Brasil e a forma que eu acredito ser a melhor já inventada.

Recapitulando, o governo "é a entidade para a qual o povo delegou o poder de condução do Estado, segundo o interesse público", como já dito. O que significa isto? Porque ele existe, é necessário? Quais os seus prós e seus contras?

a) O que significa "é a entidade para a qual o povo delegou o poder de condução do Estado, segundo o interesse público"?
"Entidade" é só um termo que tenta representar o Governo como um corpo integrado, o que de fato ele é, mas que também é dividido e organizado em subpartes, os órgãos, que também podem ser subdivididos e assim por diante.
"O povo" significa todas as pessoas que nasceram ou que moram no estado e que tem poder/direito político. Ter poder/direito político é uma definição que o próprio povo ou Estado faz. Poderia ser todas as pessoas com mais de 18 anos. Poderia ser todas as mulheres com idade entre 14 e 50 anos. No estado democrático, tende-se a delimitar uma idade mínima como único critério de exercício do poder.
"Delegou" significa que o titular (o dono) do poder é sempre o povo, mas que por uma questão de eficiência e especialização, ele repassa o direito do exercício deste poder àquela entidade chamada governo, desde que este também se sujeite as regras e cumpra as determinações constitucionais de funcionamento. Já estas determinações constitucionais servem para definir a estrutura básica de funcionamento do Estado e do próprio Governo. Ou seja, elas limitam o exercício do governo à regramentos pré-determinados pelo povo, que foram materializados pela assembleia constituinte em uma lei chamada Constituição. Em outras palavras o "delegar" é o ceder temporariamente o exercício do poder, desde que obedecida a Constituição do Estado.
"O Poder de condução do Estado" significa todos os atributos de força e realização necessários para a realização do interesse público. São tipos de poderes do estado: Poder Vinculado, Poder Discricionário, Poder Hierárquico, Poder Disciplinar, Poder Regulamentar e Poder de Polícia. Nós não vamos tratar deles aqui, mas existe muito conteúdo na internet, livros e tratados sobre cada um deles à disposição. Basta pesquisar.
"Segundo o interesse público" significa que a delegação de poder conferida pelo povo ao governo só é válida se o governo usá-la para o alcance do interesse público. Se o governo utilizar do poder que lhe foi delegado para o alcance de objetivos particulares ou de grupos específicos ele infringe um princípio básico do estado republicano, tornando-se ilegítimo.

Para evitar a concentração do poder e a sua apropriação e mau uso, a sociedade dividiu-o em quatro: o constituinte, o legislativo, o executivo e o judiciário.
  • O constituinte é o poder que escreve as regras gerais, aplicáveis a todos, os direitos e garantias fundamentais do povo, a organização básica do Estado, a distribuição das competências entre os poderes e outros temas que ele julgar relevante. É um tipo de poder legislativo, mas é originário, termo usado para dizer que ele não tem limites. É o mais forte poder de todos e por isto surge apenas em determinadas épocas, por escolha social, e é dissolvido após a elaboração da constituição. O constituinte está sujeito apenas ao interesse público, que é princípio fundamentador da sua existência e manifestação.
  • O legislativo é muito semelhante ao constituinte. Ele também escreve as regras gerais, aplicáveis a todos e tudo mais. Porém ele é limitado por alguns princípios determinados pelo poder originário e a forma do seu funcionamento é determinada pelo poder originário. A função do legislativo é criar leis. E as leis têm dois objetivos básicos: ou elas criam direitos ou elas criam deveres. Ao criar direitos e deveres o Legislativo pode limitar ou expandir a atuação dos outros poderes (dentro dos limites constitucionais) e das pessoas, físicas e jurídicas. Ele pode também alterar certas determinações do poder originário, atualizando-as às novas necessidades do povo. Então o funcionamento da sociedade é fortemente influenciado pelo legislativo. No Brasil, o legislativo tem ainda a função de aprovar o orçamento de gastos do executivo e de fiscalizá-lo, tanto no aspecto da execução orçamentária e financeira quanto nos mais diversos temas e obedecimento às leis. Compõe o poder legislativo os deputados, senadores, vereadores. Eles devem criar leis que representem e materializem o interesse público e o bom funcionamento da sociedade.
  • O executivo é o poder que tem a função de aplicar a lei e administrar o governo e de executar as políticas públicas. Ele é responsável por perseguir a maioria dos objetivos do povo. Ele vai cuidar de executar as políticas para oferecer minimamente segurança interna e externa. Quanto mais responsabilidades o povo delega ao Estado, maior ele precisa ser para executá-las. Se o Estado precisar garantir educação, saúde, lazer, moradia, vestuário, trabalho, transporte etc. ele deverá ser muito grande e por ser muito grande ele será caro. Cabe ressaltar que o poder executivo irá perseguir os objetivos do povo de acordo com a legislação imposta pelos poderes originário e legislativo.
  • O judiciário é o poder que também vai aplicar a lei, mas neste caso não para conduzir a sociedade, mas sim para resolver litígios. Toda vez que uma pessoa deixar de fazer o que uma lei obriga ou fazer o que uma lei proíbe ela estará sujeita à aplicação da lei. O judiciário então lhe aplicará a lei e encaminhará a pessoa ao seu cumprimento. Quando nas relações entre as pessoas alguma se achar prejudicada por outra, sob algum aspecto legal, também poderá acionar o judiciário para julgar o caso e aplicar a devida correção.
Apesar de estarem divididos em quatro, os poderes do governo compõem um só: o poder público. Que tem sempre a finalidade de atender o interesse público, que é supremo, não pode ser desobedecido. Daí surge outro conceito que é basilar para entender o funcionamento do governo e do estado: a indisponibilidade do interesse público.

A indisponibilidade do interesse público significa que o agente que recebeu o poder por delegação do povo, seja ele o presidente da república, o senador, o juiz, o administrador público ou o atendente do INSS, não pode se apropriar deste poder para seus fins pessoais, ou da sua família, ou da sua religião, ou do seu partido político. A finalidade de toda a sua atuação deve ser o interesse público de fato, estando disposto em lei ou não.
É por isto que o preenchimento de uma vaga no serviço público deve partir de critérios objetivos e pré-estabelecidos, para que todos que tenham interesse possam concorrer em pé de igualdade. Não é do interesse público que o juiz ou o deputado nomeie seus amigos ou parentes para o exercício de cargos públicos, remunerados com o dinheiro público. Pois ele estaria utilizando o seu poder para o alcance de interesses pessoais, e não do interesse geral.

E há que se definir bem o alcance deste interesse público. É um interesse de todo o povo que vive e até que já viveu no Brasil. É um interesse que foi se construindo ao longo da história, ao longo de diferentes constituições, porque a nossa constituição por exemplo, foi elaborada por pessoas que na sua maioria nem exercem mais os seus direitos políticos (devido à idade avançada ou mesmo ao falecimento), e mesmo assim ela define grande parte do que é hoje o nosso interesse.

Por fim, concluímos que o grande objetivo do governo é realizar o interesse público. E toda ação do governo que não esteja alinhada com este objetivo deve ser vista como ilegítima e cobrada como tal. E estou falando de todos os poderes do governo, de todos os entes federativos. Este é um princípio básico que devemos levar para o dia-a-dia. E principalmente para medir e julgar a qualidade dos nossos agentes públicos, substancialmente na hora do voto.

Agora, trataremos do mundo real. O que é Estado e Governo no mundo real?
A definição de Estado não muda muito no mundo real. Ele realmente é um pedaço de terra, delimitado por fronteiras aceitas internacionalmente, dentro das quais reside e vive um povo, que elege um governo para exercer o poder. E as diferenças não são tão importantes para o que queremos discutir aqui.
Vamos partir para o governo. O governo é o grupo de pessoas eleitas (presidente, deputados e senadores) ou indicadas por elas (ministros de estado, ministros do STF e outros), para governar o Estado. Vamos falar do presidente e de como ele é escolhido.

O presidente é escolhido pelo povo a partir de uma lista de 5 a 10 concorrentes, que apresentam as suas promessas de governo durante aproximadamente 3 meses, na televisão e no rádio, com horários proporcionais ao tamanho da sua bancada atual no legislativo federal. Também podiam fazer uso de patrocínio privado, de empresas doadoras, para ajudar a turbinar a sua campanha, com showmícios, festas, carreatas, contratação de pessoas para fazerem campanha e impressão de santinhos.
Hoje existe um fundo público para compensar que não pode mais haver doações empresariais. Fundo este que é bastante generoso e também é dividido de acordo com o tamanho da bancada.
Boa parte da verba de campanha é despendida em propaganda. Não uma propaganda sobre o plano de governo. Propaganda sobre a pessoa, sobre as qualidades e atributos pessoais que o diferenciam dos outros. São elaboradas produções cinematográficas para convencer de que aquele candidato deve nos governar por quatro anos. Em 2010, as campanhas legislativas gastaram 40% com propaganda, totalizando valor aproximado de R$ 1 bilhão (http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0104-62762016000100056&script=sci_abstract&tlng=pt - Tabela 3).

Não existem parâmetros uniformes para se escolher um governante. Cada pessoa terá o seu próprio método. No Brasil, parece haver uma tendência. Aquele candidato que:

  1. Tem mais tempo de televisão (maior base de parlamentares - grupo de poder mais forte), 
  2. Consegue fazer mais promessas, mais convincentes (melhor equipe de marqueteiros), 
  3. É mais simpático e tem os melhores filmes de campanha (melhor equipe cinematográfica)
  4. Tem menos denúncias contra ele (menos tempo na política, práticas mais honestas, ou melhores advogados)
No entanto, o poderio financeiro não se reflete em um bom programa de governo. Os planos de governo que são divulgados estão repletos de propostas genéricas que atendem a todos os anseios da sociedade, que prometem resolver boa parte deles em quatro anos de governo.

A história se repete de quatro em quatro anos, e nossa esperança nos empurra a acreditar que desta vez vai ser diferente. Este candidato é o melhor, vou votar por conta das suas promessas, sem prova ou indício de competência para implementá-las. É a insanidade, como Einstein escreveu: “continuar fazendo sempre a mesma coisa e esperar resultados diferentes”.

Na prática, depois de tudo, o candidato que mais tem recursos e que participa dos grupos de poderes estabelecidos mais fortes muito provavelmente será eleito. Em que dimensão isto representa o interesse público é a grande questão.

A provocação aqui é perceber que o sistema foi (ou é) concebido para entender ao interesse dos grupos de poder estabelecidos já na estrutura estatal e não ao interesse público. Porque o recurso concedido ao candidato é proporcional ao tamanho da sua base de poder, e a sua base de poder é construída sobre recursos dos próprios candidatos. Antes, dos candidatos mais patrocinados pelas empresas, agora dos candidatos que são mais ricos e podem torrar o seu próprio dinheiro na campanha.

Após refletir sobre estas questões e reparar no conteúdo de boa parte das discussões que estão em pauta nos grandes sites e nos grandes jornais, percebo que são discussões sobre aspectos superficiais do governo e do Estado, discussões dentro de uma lógica que aceita como legítima uma condução do poder que se finge uma coisa (representar o interesse público), para se vestir de legítima, mas que na verdade é outra coisa (a apropriação da máquina estatal para fins particulares).

Quando os grupos de poder aparelham o Estado e impõem o seu interesse ao funcionamento estatal, a supremacia do interesse público é quebrada. Ele passa a estar disponível para ser usado para fins particulares, para estes grupos de poder, que naturalmente (pela lógica do poder) tem dois grandes objetivos:
  1. Aumentar o seu poder
  2. Manter-se no poder
Para aumentar o poder, na lógica de funcionamento atual, é preciso extrair valor do Estado, direcionando para os grupos de poder, porque na lógica atual o dinheiro aplicado na campanha é que realiza os dois grandes objetivos. Quanto mais capacidade de mando, de legislação e de julgamento, mais poder se tem. Então a lógica do aparelhamento começa a dominar. O resultado, após décadas, não pode ser diferente: os três poderes do Estado já estão tão desconectados do interesse público que este não se sente representado de forma alguma, na maioria dos aspectos. E este é o ponto em que estamos. A "crise de falta de legitimidade" que passamos nada mais é do que a constatação de um longo processo, de décadas de aparelhamento do Estado por grupos de poder.

Brevemente, o que são estes grupos de poder? São famílias, empresas, sindicatos, bancos, grupos religiosos. Tudo que você já sabe.

Estamos em condições de tirar a conclusão mais importante do texto: a ideia de interesse público não consegue conviver com a lógica tradicional do poder. Após a invenção da república, a lógica tradicional do poder (aquela de Maquiavel, de Sun Tzu) perdeu o seu sentido, pelo menos na teoria. Porque o Estado, como coisa pública, deve sempre obedecer ao interesse público, independente de quem exerce o poder. Então a nova lógica do poder deveria ser dirigida para o exercício do poder e não para apropriação do poder. Em outras palavras, a apropriação do poder é inalcançável, sendo que o máximo que os grupos podem é brigar pela sua manutenção no exercício do poder. Dito isto, é fácil concluir que o determinante para tal fim seria o bom alcance do interesse público. Esta seria a nova fonte de permanência no exercício de poder.

Este deve ser o novo paradigma se quisermos de fato alinhar Governo e Estado, novamente. Toda prática de governo descasada desta lógica tende a se afastar da representatividade. Tende a perder legitimidade até a beira do caos, e viver de reforma em reforma, como o Brasil.





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