Se é fácil, por que não muda?

Para mudar algo é necessário haver a ocorrência cumulativa de três atributos:

1. Vontade
2. Direção
3. Força

Sobre a vontade
A vontade é o elemento mais simples de se descrever. Surge como uma determinação interna de querer ser diferente do que se é. Logo, ela surge da insatisfação com o estado atual e avança para o desejo de mudar esta realidade.
No Brasil, esta vontade tem duas dimensões: a constitucional, que é vinculada (de cumprimento obrigatório) e a política, que é discricionária (de cumprimento opcional ou escolhível, de acordo com o desejo da força política que impera naquele momento).
Para você entender a vontade constitucional, basta ler a constituição, em especial os primeiros 17 artigos. Aquelas vontades ali expressas são de persecução obrigatória pelos poderes públicos. As forças políticas eleitas (Executivo, Legislativo) ou instauradas (Judiciário e MP) não tem a opção de não cumpri-las, ou pior, de contraria-las. O que é permitido, no entanto, é que se emende a constituição, modificando, excluindo ou incluindo uma nova vontade, se for juridicamente possível.

Sobre a direção
A direção está relacionada com o objetivo. É o estado futuro que se almeja. É onde se quer chegar. O conceito de direção é fácil de descrever mas a direção é muito difícil de se definir. Primeiro porque deve-se partir do entendimento que para definir uma direção é necessário saber quanta força ou energia é preciso gastar para se chegar ao novo estado e se de fato, tem-se capacidade para gerar este esforço.
Também é difícil definir a direção porque é necessário conhecer os atributos, em termos de qualidades e os defeitos, do estado atual e do desejado e depois as opções possível de conformação dentro de cada atributo. Do contrário pode-se despender enorme energia/recursos para se chegar a um estado que não era o melhor possível. Vamos a um frameworkezinho básico:

  1. Quais são os atributos importantes que compõe o estado? 
  2. Qual a importância relativa de cada atributo - o ranking?
  3. Como nós nos avaliamos atualmente em cada um destes atributos atualmente?
  4. O que temos que é importante perder (defeitos a perder) para alcançar o estado desejado?
  5. O que não temos que é importante ganhar (qualidades desejadas) para alcançar o estado desejado?

Quando falamos das opções de escolha dentro dos atributos referimos que há diversas opções que se excluem. Portanto conclui-se que para definir a direção de forma adequada é preciso:

  1. Conhecer a maior quantidade de opções possível
  2. Discutir as opções comparativamente, para definir qual apresenta melhores condições de nos trazer o estado desejado
  3. Definir as escolhas
Abre parêntesis (
Para exemplificar, suponhamos que:
  1. A educação seja definida como um importante atributo componente do estado. 
  2. E que a educação é o atributo mais importante de todos, então contará com privilégios na dotação dos recursos, se concluirmos que é possível de fato avançar. (Quem deve definir isto? Qual o nível de participação popular neste processo? Como será o processo de definição?)
  3. O conceito de educação é 
    1. Analisado e quebrado em
      1. Qual é o objetivo da educação para o país
      2. Educação infantil
      3. Educação fundamental
      4. Educação média
      5. Educação técnica
      6. Educação profissional
      7. Educação superior
      8. Educação tecnológica
      9. Educação pedagógica
      10. Educação científica
    2. E avaliamos nossa posição atual em cada um dos tipos de educação
      1. Para a educação infantil, por exemplo, avaliamos que estamos mal, em termos de resultados (preferencialmente mensuráveis)
      2. Qual é o objetivo da educação infantil para o país
        1. Quais seus impactos econômicos
        2. Quais seus impactos sociais
      3. Definimos os grandes defeitos a perder:
        1. Falta de vagas nas creches
        2. Falta de capilaridade das creches - concentradas nas regiões centrais
        3. Baixa taxa de escolarização de crianças em nível infantil
        4. Programa atual exclui o diálogo sobre valores básicos republicanos: respeito ao próximo, direitos humanos, valorização da vida etc.
      4. Definimos as qualidades desejadas:
        1. Educação infantil integral universal - creches e pré-escola
        2. Política e prática homogênea de educação infantil na rede pública
        3. Elaboração de metodologia de aplicação e avaliação das páticas e dimensões da educação infantil
        4. Entrega ao ensino fundamental de crianças capazes de avançar, alimentadas, educadas frente aos valores republicanos e democráticos.
    3. A partir daí passaríamos a explorar as possibilidades de escolha dentro dos atributos, que já está mais relacionado sobre as opções para atingir o objetivo, por exemplo, sobre como acabar com a falta de vagas nas creches:
      1. Falta de vagas nas creches
        1. Construir creches públicas e contratar mais professores
        2. Aumentar o tamanho das creches atuais e o tamanho da classe sem contratar mais professores
        3. Aumentar o tamanho das creches atuais e o número de salas de aula, contratando mais professores
        4. Estimular o setor privado de educação infantil por meio de subsidio e definir contrapartidas programáticas
        5. Estimular o setor privado de educação infantil por meio de bolsas de estudo e definir contrapartidas programáticas
        6. Estimular as grandes e/ou médias empresas a oferecerem serviço interno de creche aos funcionários e subsidiar via incentivo fiscal e definir contrapartidas programáticas
        7. Criar o Exame Nacional do Educador Infantil e vincular o conteúdo programático deste exame à política pública e à estratégia educacional para a infância, obrigatório para professores da rede pública e privada.
        8. Etc.
      2. Após discutir e comparar as opções, em termos de custo, simplicidade de implantação, dependências externas, benefícios etc., definimos as opções escolhidas e as prioritárias. Está definida a direção.
Obviamente, este é apenas um exemplo genérico. Um trabalho real exigiria a elaboração de estudos, análises muito mais detalhados, e a definição das opções escolhidas por um grupo técnico e representativo das partes interessadas da sociedade.
) Fecha parêntesis.

Sobre a Força
A força é a capacidade de ação dos recursos humanos, tecnológicos e financeiros (HTF) disponíveis. Para executar determinada mudança em determinada direção é necessário se organizar uma quantidade de recursos de modo que eles gerem o melhor resultado possível.
Os recursos humanos são a pessoas disponíveis para participar do empreendimento. Inclui a somatória do conhecimento, das habilidades e das atitudes destas pessoas. Ou seja, é um conceito de competência humana disponível. Logo, se você tem uma grande quantidade de pessoas incompetentes (que não tem o conhecimento necessário, as habilidades necessárias ou a atitude necessária para realizar aquela ação) você não tem capacidade de ação humana, mas apenas recurso numérico.
Os recursos tecnológicos tem duas dimensões: a dimensão da tecnologia de origem interna, que surge da própria competência humana que está disponível para executar a ação - ou seja, da tecnologia administrativa (planejamento do trabalho e de ações e rotinas, organização de recursos físicos e humanos, controle de execução de projetos e tarefas, aplicação de soluções internas de automação etc.) e a dimensão da tecnologia de origem externa, que é adquirida externamente e aplicada na execução das ações. Exemplos são computadores, tecnologias de geolocalização, tecnologias de controle e acompanhamento de execução, automações de origem externa, consultorias de informática etc.
Já os recursos financeiros representam a dotação orçamentária e financeira destinada a executar aquela empreitada.

Há que se considerar a interdependência entre os tipos de recursos para a geração da força. Não adianta dispor de dois tipos de recursos e não dispor do terceiro. Ao se começar qualquer execução pública sem a garantia da existência e garantia da disponibilidade dos recursos até o atingimento do objetivo se está correndo sério risco de se desperdiçar todos os outros recursos utilizados e não alcançar nada do objetivo. E isto ocorre muito no Brasil. Projetos e obras que são executados até determinado ponto e são abandonados antes do atingimento do seu objetivo, por falta de um dos três tipos de recurso. Ocorreu aí enorme desperdício de recursos nas outras duas dimensões, que poderiam ter sido alocados e reunidos para garantir a viabilidade de outro projeto.

Após definidas as escolhas (na etapa da vontade), deve-se partir para a avaliação da força necessária para a consecução de cada combinação de ações e a capacidade que o sistema tem de prover esta força, para que não haja abandono do projeto e desperdício de recursos. Tem-se basicamente que tratar três aspectos:

  1. Qual é a força máxima disponível para o alcance do objetivo definido na direção
  2. Qual é a combinação de soluções ótima para o alcance o mais próximo possível/ou exatamente no objetivo.
  3. Há garantia do fornecimento da força necessária (HTF) para conclusão dos projetos ou é necessária redução do escopo?
Temos que ter em mente que se o alcance de determinados objetivos depende da conclusão dos projetos (como o do número de creches, por exemplo), é melhor que se comece e se conclua 3 projetos rapidamente, para que comecem a gerar o resultado, ao invés de começar 30 projetos ao mesmo tempo e não terminar nenhum. Meia creche não serve, assim como vários outros bens públicos, que precisam estar finalizados e em condições de operação para começar a gerar valor para a sociedade.

Outra possibilidade, ainda no caso das creches, seria assumir publicamente que não haverá força para tornar o sistema universal e integral em quatro anos, mas estabelecer de fato o objetivo honesto do programa como criar 1 milhão de vagas a mais e estender a integralidade para todo o sistema público urbano.

Então é fácil mudar?
Há limitações de vontade, mas são resolvíveis.
Vamos dividir a vontade em dois tipos: a vontade constitucional e a vontade política.
A vontade constitucional está dada e não é ruim. Apesar de ela colocar nos ombros do Estado um peso que ele ainda não é capaz de carregar, ela traz bons direcionamentos e deixa uma clara e expressa vontade de mudar, de melhorar, em vários aspectos. Cabe então a nós, cobrarmos a priorização e a execução de planos e projetos que realmente possam trazer a melhora. Logo, a vontade constitucional já está garantida, só precisamos cobrar.

A vontade política não está garantida, mas é pressionável. Hoje há um ambiente de conforto para os agentes que encabeçam a máquina pública, nos três poderes. Em alguns momentos eles são até mostrados pela mídia e vistos por nós como os donos do poder que o seu cargo lhe confere. Não é bem assim. Princípio básico republicano é que a ação e o poder do agente público (presidente, ministro do STF, Deputado, Senador, administrador público, no geral) emana do povo e deve ser exercido na medida do interesse público. Então o público já tem a autoridade de cobrar e de pressionar por uma postura condizente e não de achar que é normal o uso do aparelho público para fins partidários ou particulares. Isto tem de ser visto como inaceitável.

Há limitações de direção, as mais fáceis de resolver.
As limitações de direção também podem ser agrupadas em dois tipos. As de ordem política e as de ordem administrativa. As de ordem política derivam da incapacidade de parte do poder político articular com a sociedade, em definir as direções e comunicar este direcionamento de forma efetiva. Já as limitações de ordem administrativa, corresponde à incapacidade de segmentos da estrutura burocrática administrativa em colaborar para o estabelecimento de boas direções, sendo que estes profissionais têm, ou deveriam ter, o conhecimento técnico capaz de prestar um bom assessoramento para a construção de um bom mapa de direções.
Mesmo antes de assumir um cargo a incapacidade já fica evidente. Basta ler os programas de governo dos presidenciáveis em 2014, para correr o risco de cair em desesperança, em depressão. Tratam-se de documentos de enorme carga teórica e com propostas vazias sobre um apanhado abrangente de anseios sociais. Documentos do tipo: "queremos resolver tudo, conhecemos todos os problemas, mas não fazemos ideia do que fazer".
Entretanto, sabemos que há no Brasil uma grande quantidade de organizações com conhecimento agregado, com capacidade para ajudar a definir a direção, em conjunto com o aparelho técnico-burocrático do Estado, que também é bom, quando tem liberdade para trabalhar em projetos em prol do público, e não da obtenção de votos.
Parte da solução é definir um método eficaz de definição das direções. Na área de educação infantil, só para ficar no exemplo anterior, mesmo nem sendo minha área, eu conheço algumas organizações e fundações que poderiam contribuir para a definição de direções muito promissoras junto com o próprio corpo técnico do MEC. Organizações como a Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal, a Fundação Ayrton Senna, Fundação Lemann, dentre outras.
Um método eficaz seria por exemplo a simples aplicação de parte da teoria deste post. Com alguns detalhamentos e aperfeiçoamentos. Há que se mencionar que já passou do tempo de incluirmos a sociedade de forma efetiva nos processos de elaboração das políticas públicas. Um bom exemplo desta última prática foi a série de consultas públicas realizadas pelo poder público, em especial a Câmara Municipal de São Paulo, para elaboração do novo plano diretor da Cidade.

Há limitações de força, as mais difíceis de resolver, mas é possível.
A primeira atitude para resolver a falta de força estatal é assumir que não há como ter força para tudo. Há que se priorizar. Fazer escolhas e renunciar a algumas medidas. Como dito, é preferível se concluir a construção de 10 creches em um ano do que se "entregar" 90 creches em 4 anos sem condições de funcionamento.

Outro aspecto importante é a eficiência do uso do recurso humano, tecnológico e financeiro. Há muito desperdício, seja por falta de mecanismos de controle, seja por corrupção ou pela simples e velha falta de competência (conhecimento, habilidade e atitude) nos envolvidos na execução do projeto público. Este é um aspecto dificílimo de resolver mas passa invariavelmente pelo controle externo e social. E o próprio governo tem que fornecer os meios para este controle, de dentro para fora. As pessoas devem cobrar este compromisso do governo, desde as propostas eleitorais. Se ele não faz por mero senso de dever e interesse público, as pessoas devem cobrar que faça.

A terceira consideração importante a fazer para o aumento da força é a desestatização da ação. Existem mazelas características do serviço público e mazelas características da iniciativa privada. Quanto a execução de projetos e serviços operacionais a iniciativa privada tende a ser mais eficiente. E o interesse público, em termos de prestação de serviços está calcado no custo, na eficiência, na continuidade da prestação e na qualidade do serviço prestado. O grande risco que se corre atualmente, deste modelo de privatização do funcionamento é o desvio dos recursos transferidos para abastecimento de campanhas e cofres particulares. É dado que a fiscalização sobre o gasto público, fora da máquina pública é mais difícil. Mas este entrave não pode ser usado de desculpa para manter o estado inchado e sangrando, sem atender ao interesse público. Ao contrário disto, ferramentas de fiscalização e controle devem ser expandidas e implementadas com mais vigor. Exemplos são: concorrência privada para prestação de serviços públicos através da concessão competitiva, em que os serviços são prestados por prestadores concorrentes que ganham "mercado" a medida que são mais eficientes. Ao se contratar a construção de uma estrada, por exemplo, poderia ser um princípio contratar no pacote inicial a garantia do funcionamento, por um prazo de 10 anos, com pagamentos mensais para a garantia da manutenção (de onde o agente auferiria o seu lucro do negócio) de modo a induzir o agente privado a caprichar na qualidade da obra para reduzir o custo da manutenção. Há diversos meios de se estimular a concorrência em modelos monopolísticos, não vou ficar detalhando aqui, mas há.
Ou seja, implementando ações apenas nestas três alavancas já se poderia observar um forte aumento na força do Estado para atingir os seus objetivos.

Agora, parto para a resposta à pergunta: "se é fácil, por que não muda?"
A: é possível que os agentes públicos que ocupem as posições estratégicas de poder, nos três poderes, não queiram realmente mudar, porque a situação está confortável para eles.
B: nós como sociedade não temos o hábito de discutir o que é importante mudar, não há um processo de discussão direcionado à geração de opções e soluções. Há no máximo um fórum desorganizado, articulado de forma democrática pela imprensa, com opiniões pessoais dispersas.
C: não temos uma cultura de implementação - temos que ter consciência disto e trabalhar para mudar. O político tem que ser cobrado por resultado e não por obra ou promessa.
D: desperdiçamos uma quantidade enorme de força/recursos em projetos mal acabados, apressados e superfaturados
Dentre outra várias razões que todos vocês conhecem.

Nas próximas semanas vamos discutir mais especificamente técnicas, ideias e estratégias que podem ajudar a construir esta mudança. Vamos explorar os temas citados aqui e ainda novos temas. O objetivo é gerar ideias, fazer questionamentos, fomentar reflexões que tenham condição de colaborar e ajudar tanto o político bem-intencionado quanto o administrador público, a gerar e implementar programas e projetos integrados e que realmente gerem bons resultados para a sociedade.

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